STF Redefine Responsabilidade das Plataformas Digitais
O Que Muda com a Nova Interpretação do Artigo 19 do Marco Civil
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet representa um divisor de águas na regulação digital brasileira. Esta mudança jurisprudencial redefine como as plataformas respondem por conteúdos ilícitos de terceiros, criando um novo paradigma de responsabilidade no ambiente digital.
O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) foi concebido como uma carta de direitos e deveres para o ambiente digital brasileiro. Em seu artigo 19, estabeleceu-se que os provedores de aplicações só seriam responsabilizados por conteúdos de terceiros após o descumprimento de ordem judicial específica para remoção.
Esta proteção tinha um propósito claro: evitar a censura prévia e garantir que as plataformas não removessem conteúdos indiscriminadamente apenas por receio de responsabilização. Era uma salvaguarda importante para a liberdade de expressão em um momento em que as plataformas eram vistas primordialmente como intermediárias neutras.
O cenário digital de 2014, quando o Marco Civil foi aprovado, difere substancialmente do atual. As grandes plataformas evoluíram de simples repositórios para verdadeiros editores de conteúdo, utilizando algoritmos sofisticados que direcionam informações específicas para públicos determinados.
Esta mudança estrutural no funcionamento das plataformas digitais acabou por esvaziar, em parte, o sentido original do artigo 19. A neutralidade presumida das plataformas, que justificava sua proteção legal, já não corresponde à realidade de sua atuação no ecossistema informacional.
A decisão do STF estabelece um regime de responsabilidade diferenciado, baseado na natureza do conteúdo ilícito: Para crimes graves (como racismo, terrorismo, violência contra crianças e adolescentes, violência contra a mulher, crimes contra a democracia e saúde pública) as plataformas podem ser responsabilizadas diretamente após notificação extrajudicial, caso não removam o conteúdo, não sendo necessária ordem judicial prévia para configurar a responsabilidade.
Porém, para crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria) se mantém a necessidade de ordem judicial específica.
A intenção desta distinção é estabelecer um equilíbrio entre a proteção da liberdade de expressão e a necessidade de combater conteúdos manifestamente ilícitos de forma mais célere.
Assim, a partir de agora, as estratégias processuais para remoção de conteúdos ilícitos devem considerar a natureza da violação, sendo que em caso de crimes graves, uma notificação bem fundamentada ganha força como instrumento inicial com vistas a remoção do conteúdo, já para conteúdos que envolvam a honra, reputação, segue a necessidade de ajuizamento de ação para obtenção de ordem de remoção.
A notificação extrajudicial torna-se elemento crucial de prova em eventuais ações de responsabilização, portanto, recomenda-se documentar detalhadamente todas as comunicações com as plataformas de modo a preservar evidências do conteúdo ilícito com capturas de tela, URLs, etc., com vistas à comprovação da ilegalidade. Atas notariais servem como reforço de prova e dão fé pública ao conteúdo probatório.
Já as plataformas digitais deverão revisar suas políticas de moderação de conteúdo considerando implementar canais eficientes para recebimento das notificações, instituir protocolos internos de análise eficiente de denúncias, capacitar suas equipes, dentre outras medidas que visem cumprimento da nova interpretação jurisprudencial.
Alguns mitos e verdades sobre a decisão do STF:
Mito 1: “A decisão acaba com a liberdade de expressão na internet”
Verdade: A decisão mantém a proteção judicial para casos de crimes contra a honra, preservando o debate público. Apenas conteúdos manifestamente ilícitos e graves passam a ter tratamento diferenciado.
Mito 2: “As plataformas serão obrigadas a remover qualquer conteúdo após notificação”
Verdade: A obrigação de remoção após notificação extrajudicial aplica-se apenas a categorias específicas de conteúdos graves. Para crimes contra a honra, mantém-se a necessidade de ordem judicial.
Mito 3: “Haverá censura prévia generalizada por parte das plataformas”
Verdade: As plataformas continuam com a prerrogativa de avaliar as notificações recebidas. Não há obrigação de remoção automática, mas sim responsabilidade caso mantenham conteúdos manifestamente ilícitos após serem notificadas.
A decisão do STF, não encerra o debate sobre a regulação das plataformas digitais no Brasil. Pelo contrário, evidencia a necessidade de uma legislação mais abrangente e detalhada, que idealmente deveria ser discutida e aprovada pelo Congresso Nacional, pois o artigo 19 do Marco Civil não apenas recebeu uma nova interpretação do judiciário, mas uma verdadeira nova redação.
Alguns desafios permanecem, em especial em relação à clareza diante do que constitui “manifestamente ilícito” em cada categoria de crime considerando as características do direito penal, a fim de evitar que a plataforma seja responsabilizada de forma regressa, quais os procedimentos de notificação a fim de que a mesma seja eficaz aos fins a que se destina, quais os prazos razoáveis para a adequada análise e remoção a partir da notificação e ainda a garantia de transparência nos procedimentos de moderação pelas plataformas a fim de evitar abusos e ofensa aos direitos dos usuários.
O equilíbrio entre liberdade de expressão e responsabilidade continua sendo o grande desafio. A decisão do STF oferece novos parâmetros para esta equação, mas o debate permanece aberto, dinâmico e necessário, como a própria internet que busca regular.